mergulhem-se

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

"IF" - Paulo Mendes Campos

Meu filho, se acaso chegares, como eu cheguei a uma campina de horizontes arqueados, não te intimidem o uivo do lobo, o bramido do tigre; enfrenta-os nas esquinas da selva, olhos nos olhos, dedo firme no gatilho.

Meu filho, se acaso chegares a um mundo injusto e triste como este em que vivo, faze um filho; para que ele alcance um tempo mais longe e mais puro, e ajude a redimi-lo.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Seda - Alessandro Baricco, Romance

Hervé Joncour é um francês comerciante de Seda, devido a uma praga dos bichos-da-seda no Oriente-Médio é obrigado a partir para o Japão para consegui-los através de contrabando - nesta época, meados de 1860, este comércio era proibido.

"[Hervé Joncour] Cruzou a fronteira vizinha a Metz, atravessou o Würtemberg e a Baviera, entrou na Áustria, alcançou de trem Viena e Budapeste, e depois prosseguiu até Kiev. Percorreu a cavalo dois mil quilômetros de estepe russa, passou pelos Urais, entrou na Sibéria, viajou por quarenta dias até alcançar o lado Bakail, que as pessoas do lugar chamavam: o último. Desceu o rio Amur, costeando a fronteira chinesa até o oceano, e, quando chegou ao oceano, deteve-se no porto de Sabirk por dez dias, até que um navio de contrabandistas holandeses o levou ao cabo Teraya, na costa oeste do Japão."

É entre esse pequeno roteiro, de ida e volta, repetido diversas vezes com pequenas variações de palavras, que o romance se embalsa e se repete; funciona quase como uma espécie de refrão que nós identificamos invariavelmente ao longo do texto e ao qual nos pautamos. É como se essa maneira de tecer a partitura da história também fizesse parte do modo com que Joncour percebe o mundo novo e entramos em suas viagens com o mesmo fascínio, estranheza, e uma espécie de inércia que penso ser responsável também pela leveza (quase existencialista?) do livro.

Tenho a impressão que, neste livro, Alessandro Baricco faz o inverso de "Oceano Mar" onde sua escrita é totalmente escorrida, quase onírica, livre, as passagens dissipam uma nas outras sem saber quando termina uma e começa outra. Aqui, o autor escreve com pulso marcado, seco, enxuto e rápido. O incrível é que mesmo assim ele não perde o lirismo, que talvez seja a sua característica mais forte. Como podemos ver nas imagens que Baricco cria através de Joncour, por exemplo, ao definir o "fim do mundo" como o "invísivel", ou ao revelar ideogramas japoneses em papéis de arroz que diz são como "cinzas de uma voz queimada" etc.

Para mim, de tudo o que li, este é um dos autores de nomes mais fortes para o mundo contemporâneo. Devido a sua capacidade de criação e resignificação simbólica e imagética. Reinventar o mundo e dar/manter um lirismo nas coisas que parece quase impossível hoje em dia – se pensarmos na forma com que tornamos tudo facilmente volátil. O deslocamento de figura, compreensão, sensação provocado dentro da gente, aqui, é incessante.


"- O que são?
- Um viveiro.
- Um viveiro?
- Sim.
- E para que serve?
Hervé Joncour mantinha os olhos fixos nos desenhos.
- Você o enche de pássaros, tantos quantos puder, e depois, um dia em que lhe acontece alguma coisa boa, você o escancara, e os vê sair voando."
página 74


Seda
Alessandro Baricco
Ed. Cia das Letras
121 páginas

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Tijolo de segurança - Carlos Heitor Cony, Romance

O homem "que pensa em nada, mas profundamente" vive nesta ilha, a Ilha do Governador (Rio de Janeiro) de 1960, enfeitada por Cony, que na verdade mais parece um cenário mítico fora do espaço e do tempo - ou digo isto porque quando penso na ilha que conheço não a reconheço ou a reconheço tão perfeitamente em qualquer lugar do mundo que prefiro deixá-la como recorte atemporal. Cláudio vive nesta ilha, este personagem, que mais parece um retrato de Cony nos seus 30 anos - engraçado porque ele é irônico, descrente, pessimista, e ao mesmo tempo ingênuo, amoroso, amante?.

A ilha vai ao caos com os boatos de um suposto ladrão que ronda de madrugada, um ladrão que nunca rouba, parece andar nu, os mais crentes dizem que é o demônio, outros que é a alma de um pescador, outros que é um tarado, outros que é apenas um bêbado ou um louco, mas os loucos que mal têm? Muitos dizem que o viram, outros acreditam tê-lo visto, vultos, sombras, histórias que transformam o cotidiano da ilha com seus coadjuvantes, o bêbado que dorme ao pé das canoas, o dono do bar, o sogro rabungento, o dono da boate, a mãe velha e pobre do bêbado, os que acreditam em fantasma, os que chamam a polícia. Esse ladrão existe mesmo? E quem seria? Em torno desta tecitura a monotonia angustiada do cotidiano vai se fazendo e se arrastando dentro da ilha.

É incrível como Cony pode ser ácido, irônico e lírico - numa mesma linha. Como se cada frase contivesse todas essas coisas juntas. Tem um olhar muito diferente sobre as coisas, é quase como se a gente pudesse reinventa-las o tempo todo - e faz sentido. Ótimos diálogos. Sentimento exagerado, sempre nos extremos, é com fogo, logo depois é outra coisa. Fica o convite para ler não só este romance, mas a obra toda dele.


"Saudade lúcida é uma droga. Saudade tem muita lucidez, mais angústia que ternura. Não sei por quê, associo Hamlet à lucidez. Até que ponto ele foi lúcido? Quando duvidou do fantasma? Quando acreditou nele? O ladrão daqui da rua será um fantasma igual? Haverá lucidez nesse fantasma? Talvez a lucidez se resuma na consciência da sensação. A morte de Sócrates não foi lúcida nem a de Cristo. Preciso sentir o problema, mas não me acredito lúcido em coisa alguma. No fundo, lucidez deve ser a consciência física do mistério." pag 23

"Cláudio, sozinho, agora no living, descobre que tem medo também. Medo de não sabe bem o quê. Mas não tem ninguém a quem pedir benção. Tenta se abençoar sozinho, mas não é a mesma coisa." pag 44

"'A casa é minha'. Cládio olha para Marcela, triunfal. Ela se diverte agora, sabendo-se derrotada. É quando alguma coisa dentro de Cláduio o adverte para temer a mulher derrotada."

"- Papai?
- Que é?
- Eu não queria que o senhor nunca morresse.
Cláudio se assusta. Depois tenta ficar com o pensamento da filha, mas o susto é mais forte.
- Vou dar um jeito, minha filha."



Tijolo de segurança
Carlos Heitor Cony
Editora Objetiva
212 páginas

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

A Roupa do Rei, Drummondiana - Francisco Alvim

Estamos gastos sim estamos
gastos
O dia já foi pisado como devia
e de longe nosso coração
piscou na lanterna sangüínea dos automóveis
Agora os corredores nos deságuam
neste grande estuário
em que os sapatos esperam
para humildemente conduzir-nos a nossas casas


Em silêncio conversemos

Que fazer deste ser
sem prumo
despencado do extremo de um dia e
que o sono não recolheu?

Não não indaguemos
Para que indagar matéria de silêncio
Procurar a nenhuma razão que nos explique
e suavemente nos envolva
em suas turvas paredes protetoras


Nada de perguntas
A campânula rompeu-se
O instante nos ofusca

A quem sobra olhos resta ver
um ser nu a vida pouca
Só dentes e sapatos
de volta para casa

Nem um passo à frente
ou atrás
De pés firmes
o corpo oscilante
neste suave embalo da mágoa
descansemos

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Cabeceira - Ana Cristina César

Intratável.
Não quero mais pôr poemas no papel
nem dar a conhecer minha ternura.
Faço ar de dura,
muito sóbria e dura,
não pergunto
"da sombra daquele beijo
que farei?"
É inútil
ficar à escuta
ou manobrar a lupa
da adivinhação.
Dito isto
o livro de cabeceira cai no chão.
Tua mão que desliza
distraidamente?
sobre a minha mão